quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Rehab

João era um assassino em recuperação. Sempre fora muito competente em seus assassinatos, por isso ninguém nunca soube. Porém ultimamente estava se tratando. Terapia e tudo mais. 

Decidiu largar seus vícios. 

Como o lema do AA e do NA, ele repetia toda manhã - Só por hoje. 

João começou a levar o trabalho a sério. 

Conseguia não mais pensar no quanto o pescoço da tia do café sangraria caso um dia ele resolvesse... (Ela tinha um pescoço gordo com uma veia enorme que saltava aos olhos do João) 

Até suportava a voz da secretária do seu chefe sem fantasiar em cortar suas cordas vocais antes de... 

E inclusive aguentava seu colega se gabando sobre suas conquistas da noite anterior sem pensar em... 

Respirava fundo e pensava - Só por hoje! 

Chegou a ser promovido. 

Quase se esqueceu da sua compulsão por sangue. 

E até noivo ficou. 

Porém... 

A noiva reclamou de uma ligação que João não retornou. 

A secretária do chefe e sua voz irritante lembrou de uma reunião que João estava atrasado. 

A tia do café fez um café fraco – Nada pior que café fraco – pensou João. 

Seu colega, agora seu funcionário, fez algum comentário babaca sobre alguma garota gostosa do escritório. 

Ainda assim João respirou fundo e pensou - Só por hoje! 

Chegando no seu apartamento, por volta das 19h30, após trânsito curitibano das 18h30, João escuta um barulho parecendo um tiro. 

Vira e esgana o primeiro pescoço que encontra pela frente. 

Era o filho do vizinho que havia estourado um saco de pão para assustar o João. 

João respirou fundo, arquitetou a desova do corpo, se livrou das roupas que usava, lavou as mãos e então parou para pensar - Tudo bem, eu nunca gostei de crianças mesmo... 

E então recomeçou sua rehab com o seu diário - Só por hoje. 

*Texto inspirado em figuras estranhas nos ônibus desta Curitiba

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Mudanças



Há algum tempo, toda paixão que aparecia na minha vida, ou melhor, que acabava, era toda uma dor, todo um sofrimento e toda uma semana num misto de raiva e tristeza até as coisas amenizarem.

Era uma semana de dor mais um ou dois meses de adaptação. Era quase como uma mudança de casa. Como se mudar um sentimento, fazer cabe-lo de uma outra forma dentro de mim, demandasse a mudança real de uma casa. Fazer caber em um espaço novo. Num pedacinho bem menor no peito. Uma mudança de um tríplex para uma kitinet.

Acho hoje que era muito sofrimento e muita adaptação talvez para sentimentos que no fundo eu sempre soube que não durariam. Mas fazer o que, se intensidade sempre foi algo bem Janaina Galvão.

Mas posso ser honesta?

Não quero mais céu ou inferno de uma paixão.

Quero mesmo é andar com os pés no chão. De mão dada com alguém que entenda quem é maluca que vai querer fugir feito louca quando as borboletas tomarem conta do meu estômago inteiro. Que vai me olhar e dizer: “Janaina, para de pirar em terminar o que a gente tem sabe-se lá por que motivo e escolhe logo o que você quer jantar! Quer vinho?”. Que me traga pro chão sempre que eu precisar.

Que entenda minha vontade de ir ao cinema sozinha. Que me de um ombro quando alguma coisa der errado e que me faça rir. Rir é importante. Que nossa conversa dure horas e que me faça ter orgulho de tê-lo na minha vida.


E que me permita, de verdade, não ter que mudar de casa quando tudo acabar.

Mas que me deixe só tirar um quadro da parede.

terça-feira, 3 de maio de 2011

Era outono, quase inverno

Era outono, quase inverno.

De repente ela estava lá, com o carro parado na beira da praia. Alguns anos antes era freqüente o carro parado na beira da praia. Seus irmãos costumavam ir surfar. Os seus pais ficavam observando os dois no mar e ela costumava sentar na pedra, olhar pro nada.

Mas hoje ela estava sozinha. Ela descalça na areia fria, a praia vazia e o mar logo em frente. O sapato de salto que usara durante a noite ficara no carro. Usava um casaco preto por cima de um vestido florido tomara que caia.

Ela quis sentir aquela brisa fria que só existe na beira do mar em dias de outono, quase inverno. Aquela brisa que acaricia a pele e embaraça os cabelos. Queria pisar no chão frio, sentir a areia entre os dedos.

O cheiro do mar no frio é outro. É diferente do verão. No verão vem um cheiro de gente, protetor solar, criança. Já no frio, outono quase inverno, é um cheiro só de mar. Fresco e salgado.

E depois de uma noite cheia de gente, tudo o que ela queria era esse cheiro fresco de liberdade. Solidão. Engana-se aquele que pensa que a solidão é ruim. “Solidão só é ruim para quem não sabe apreciá-la”, pensou.

Sentou ali de frente pro mar. Maquiagem já borrada, uma lata de cerveja já meio quente na mão e o dia começando a nascer.

Tomou seus últimos goles de cerveja, andou até a beira do mar, molhou os pés e respirou bem fundo. E por um instante ela desejou dividir esse momento com alguém. Sentiu-se estranha. Pela primeira vez em anos, sentiu-se sozinha.

Virou as costas entrou no carro e foi embora.

domingo, 3 de abril de 2011

Recomendações

O médico a examina, faz cara feia, torce o nariz e aponta para a cadeira. Ela coloca o sapato e senta de frente para o médico de cara severa.
- Acho importante você se preocupar menos. Está ficando complicado.
- Mas Doutor, não aprendi a não me preocupar.
- Mas então está na hora de começar mocinha. Nunca é tarde...
- Ok... alguma dica de como começar?
- Tenho uma lista delas!
Ela abre a bolsa, tira um caderno listrado, fechado com um elástico vermelho. Junto vem uma caneta vermelha, do escritório onde ela trabalha.
- Tenho caneta e papel...
- Um bom livro pode ser um começo. Uma viagem para qualquer lugar.
- Isso eu já faço doutor... Viajar, ler...
- Mas não é só viajar e ler. É viajar e ler prestando atenção apenas àquilo. Você pode tentar da próxima vez. Abster-se!
- Tá bom Doutor... Mais alguma dica, caso isso não funcionem?
- Um filme também pode ser bom. Até mesmo, sofá, televisão, pipoca e coberta.
- Gosto de filmes, tv, sofá e pipoca...- o sorriso de esperança some e ela pergunta - Mas se faltar tempo Doutor?
- Tempo tem que arrumar mocinha. Trabalho ou saúde?
- É... você tem razão. Mas ainda assim... Isso é difícil Doutor... Não há nenhum botão “desligar”? Uma alavanca de “preocupações off”?
- Uma mulher de 20 e poucos anos não deve ter tanto com o que se preocupar.
- Ah... sabe que tem, viu? Não tem mesmo um botãozinho?
- Não... Mas você pode tentar os amigos, eles sempre sabem nos ajudar a abster das preocupações.
- (Suspiro) Ok... Mais alguma recomendação?
- Despreocupar-se mocinha... Despreocupar-se! Sua vida não aguenta tanto stress, entendeu? Ou você quer chegar aos 30 com cara de 40?
- Entendi! 30 com cara de 40 ninguém merece!!! Na marra eu aprendo, ok?
Ela sorri um sorriso meio amarelo, meio pensativo e levanta. O médico a acompanha até a saída do consultório, abre a porta e fala bem baixinho:
- E se nada adiantar, uma boa garrafa de vinho deve resolver.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Luto

Solto minha mão ao lado da cama e procuro o óculos de grau deixado ali antes de dormir. Sento na cama, sinto o frio da madeira nos meus pés. Cabeça lateja pelas cervejas da noite anterior. Olhos inchados, maquiagem borrada e cabelo desarrumado. Ando até o banheiro. O chão é agora mais frio, é a cerâmica. Ligo o chuveiro e, enquanto a água esquenta, me olho no espelho.

Vi o vestido jogado cesto de roupa suja. Usei meu vestido de renda. Achei que causaria boa impressão. E um salto, pois sempre nos deixa mais confiantes. Lembrei que bebi Original. Vi um resquício de batom vermelho nos lábios. O cinto preto que usei para marcar a cintura estava logo ao lado do sapato, ambos jogados no chão. Olhei para minhas mãos e o esmalte estava descascado. Senti um aperto no peito.

Entrei no chuveiro e quando me dei conta estava aos prantos. Era um choro de luto. Sensação de que enterrei alguma coisa importante. Uma dor na boca do estômago. Uma dor que me fez sentar embaixo do chuveiro deixar as gotas caírem por todas as minhas costas. Lavar toda angustia que sentia. Estava de luto e isso doía.

Lembro então que matei o que quis quando passei porta a fora do bar. Desliguei o celular e fui pra casa. Estado de choque. Deve ser comum quando alguma coisa morre. Morreu a esperança que você percebesse que podia dar certo. Enterrei a idéia. Matei a vontade de tentar, a tiros. Sufoquei o gostar e afoguei o tesão.

Senti raiva. E então levantei do chão, lavei meu corpo, meu cabelo, lavei meu rosto com força para tirar toda a maquiagem. Parei de chorar.

Sai, me enxuguei, coloquei minha lente de contato, escovei os dentes, passei protetor solar no rosto, penteei o cabelo, vesti um shorts e uma camiseta e fiquei com uma única certeza: a dor passa e as chances que o tempo dá também. Eu aproveitarei as minhas. E você?

domingo, 23 de janeiro de 2011

Cardápio

- Bom dia! Tudo bem?
- Tudo em ordem! E a senhorita?
- Tudo bem também! Me diga uma coisa, o que tem de bom hoje?
- Hoje eu recomendo o Recalque viu? Tá saindo super bem!
- É mesmo? Não gosto muito não... Não vi Atitude no cardápio... Não tem?
- Ah moça, é que a atitude tá vindo ruim, viu? Tão feia e tão pouquinha que não dá nem para um caldo...
- Ai que pena... Atitude que vocês servem aqui é sempre muito boa.
- É... O pessoal tem reclamado, mas parece que Atitude tá acabando no mercado...
- Mas além do Recalque, o que mais você recomenda?
- Hoje a Mentira tá bem bonita e a Fugacidade também tá bem gostosa...
- Hum... Honestidade também não tem?
- A gente tirou do cardápio... tava saindo muito pouco...
- Ai... quer saber, me dá uma porção de sossego então.
- Alguma bebida p/ acompanhar?
- Uma dose de paciência, por favor.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Amar la trama

Esses dias parei para pensar no que no que eu queria para 2011. A resposta veio na viagem de ida para a Ilha do Mel.

Ouvi no trajeto o último CD do Jorge Drexler. Entre todas as músicas do álbum, tenho duas favoritas, uma delas é “La trama y el desenlace”. O tema é um casal que anda com as mãos nas respectivas cinturas e a sincronia destes dois amantes. Um passeio simples, uma trama, um enredo, que pode antecipar qualquer coisa. Beijo, sexo e/ou até uma briga. O que quer que venha depois.

E conclui que o que quero para 2011 são enredos, tramas, mais que fim das coisas. A ansiedade, o frio na barriga, o desenrolar, as etapas que antecipam os fins. E confesso que não quero isso só no amor não. O tesão da vida, na minha opinião, está em conquistar e aproveitar cada segundo que antecede.

Por isso, tomo como minhas as palavras do meu uruguaio favorito: amar la trama más que al desenlace. Minha meta e meus votos para esse ano que começa.